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21 de Março: O Que o Massacre de Shaperville tem a ver com Salvador?

18/03/2009

Gilmar Santiago – Vereador de Salvador pelo Partido dos Trabalhadores
 
 
No dia 21 de março, o mundo celebra o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1969, nove anos após um protesto ter acabado em tragédia, na cidade de Shaperville, próximo a Johannesburg, na África do Sul. O Massacre de Shaperville, como ficou conhecido, vitimou quase 250 pessoas que participavam de uma manifestação contra a Lei do Passe. Esta Lei obrigava a população negra a exibir cartões de identificação com os locais onde podia circular. A manifestação pacífica da população em busca dos seus direitos foi  recebida a balas pelo exército. O resultado foi um saldo de 69 mortos e cerca de 180 feridos.

A Lei do Passe era uma das muitas leis do apartheid: um regime de segregação racial que vigorou na África do Sul de 1948 a 1990, privilegiando brancos, que são minoria da população; e discriminando e prejudicando os negros, imensa maioria naquele país. No regime de apartheid, os negros não podiam viver nos mesmos locais que os brancos, não podiam ser proprietários de terras, não tinham direito à participação política, entre outras tantas injustiças. Depois de muitas lutas contra esse regime, a situação foi se revertendo e a população negra conquistou a libertação de Nelson Mandela, a legalização do Congresso Nacional Africano(CNA), a promulgação de uma nova Constituição, o direito ao voto e as eleições multirraciais.

Mas, afinal, o que há de semelhança entre o Massacre de Shaperville, na África do Sul e a cidade de Salvador? 

Da mesma forma que em Shaperville, temos aqui mais de 80%  da população composta de negras e negros, que  ainda hoje sofrem na pele os efeitos da discriminação racial em todas as esferas da vida econômica, política e social. Somos maioria entre os desempregados na cidade campeã do desemprego. Entre os trabalhadores informais, recebemos os menores salários e ocupamos os postos de trabalho com menor prestigio e menor remuneração. É incomum ver negras e negros ocupando cargos relevantes nos bancos públicos e privados, nas lojas de grife dos grandes shoppings centers, nos restaurantes de classe média, na rede hoteleira, ou assumindo cargos de ponta no serviço público ou mesmo no parlamento.

A população negra constitui a  maioria dentre os que superlotam as celas das delegacias e do sistema penitenciário. E são a minoria entre as altas patentes do mesmo sistema. Compreende a maioria da juventude, que morre ferida de bala, seja da policia ou do tráfico todos os dias e, em maior escala, nos finais de semana na periferia - onde a maioria da população é formada por negros e negras. No campo da educação, somos a maioria dos analfabetos; e a minoria nos cursos de Medicina e Arquitetura das universidades. Na saúde, somos a maioria de portadores de anemia falciforme e de outras doenças que atingem com prevalência a população negra. Somos a maioria entre os usuários do SUS, mas ainda não temos assistência digna nas unidades de saúde plena da cidade.

E na hora da festa? A história se repete na mesma tragédia. No carnaval, que em poucos dias revela as contradições do cotidiano, somos minoria nos camarotes de luxo, nos blocos das “estrelas”; e maioria entre os “pipocas” e entre os que seguram as cordas para proteger os brancos daqui e os de fora. Somos a maioria  que cata as latinhas e que briga por um ponto nos circuitos da festa para vender a cerveja e o churrasquinho e ganhar algum trocado; e estamos entre a maioria que fica sem o remédio nos postos de saúde e com os filhos sem a merenda escolar, pois os recursos da saúde e da merenda foram utilizados para garantir a estrutura pública da festa, que viabiliza o lucro para uma minoria.

As semelhanças entre Shaperville, que viveu a dolorosa experiência do massacre, e a Salvador de hoje  são muitas, do ponto de vista dos efeitos da Discriminação Racial. A diferença mesmo é o grau de sofisticação que o racismo à moda brasileira encontrou para forjar um apartheid sem precisar lançar mão de uma Lei do Passe ou coisa parecida. Vivemos à luz da moderna Constituição de 1988, que preconiza entre um dos seus mais importantes artigos “que todos somos iguais perante a lei”. Porém as relações sociais e econômicas definem muito bem em Salvador que o Horto Florestal e o Itaigara são lugares para branco viver e a Quinta dos Lázaros (e não o Jardim da Saudade) é o destino final da maioria dos negros que morrem em nossa cidade.

Assim como os negros de Shaperville lutaram pelo fim do apartheid, podemos buscar na história da população negra de  Salvador vários exemplos de luta por direitos e liberdade, como a resistência no quilombo  do Urubu, no Cabula, a Revolta dos Búzios e dos Malês e de tantas outras rebeliões do passado, que culminaram com o fim de mais de três séculos de escravização do negro no Brasil.

Foi devido a essa semelhança de luta pela liberdade e igualdade que o Poder Executivo Municipal sancionou Projeto de Lei, aprovado pela Câmara Municipal, da minha autoria, que instituiu em nossa cidade o 21 de Março como o Dia Municipal Pela Eliminação da Discriminação Racial. De tanto lutar, haverá um dia em que o Povo negro celebrará nesta cidade e neste país uma sociedade livre do Racismo e  da Discriminação Racial.