07/06/2023
Por Luiz Geovane Andrade Santana - Diretor de Formação Sindical, Cultura, Política e Estudos Socioeconômicos
Em 2022, mantendo a sua tradição histórica de participação em debates internacionais sobre saneamento, o Sindae inscreveu-se no portal da Conferência Mundial da Água 2023 para ser uma entidade acreditada na Organização das Nações Unidas, a ONU, como uma organização que desenvolve ações em defesa do acesso às pessoas à água. A ONU tem como meta que todas as pessoas do planeta tenham acesso à água potável até o ano de 2030. O Sindae teve sucesso em seu intento e é um dos poucos sindicatos do Brasil que detém tal honra, mérito da direção atual e das passadas,bem como da categoria dos trabalhadores e trabalhadoras do saneamento ambiental no Estado da Bahia e também de todos os movimentos sociais que caminharam junto ao Sindae ao longo desses quase 40 anos de existência.
Por tal reconhecimento o sindicato poderia indicarrepresentantes à Conferência da Água 2023 em sua sede em Nova Iorque, durante os dias 22 a 24 de março. Para representar a entidade, em um evento de tal importância, a direção do Sindae escolheu Luiz Geovane Andrade Santana, seu Diretor de Formação Sindical, Cultura, Política e Estudos Socioeconômicos.
A Organização das Nações Unidas é uma entidade global, criada após a segunda grande guerra, que deveria congregar as nações em busca de uma suposta paz mundial, quando aindano contexto da guerra fria fazia bastante sentido a existência da ONU. Após o fim da guerra fria, a ONU teve que se reposicionar em torno de pautas globais para o desenvolvimento humano. A partir daí surgiram campanhas para metas e objetivos de desenvolvimento do milênio. Eram 8 metas para serem cumpridas até o ano de 2015, das quais o Brasil cumpriu 7 delas.
Após 2015, a ONU estabeleceu outras 17 metas até 2030, denominadas Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS. Nesse sentido, o ODS 6 refere-se a assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. Foi nessa toada que nasceu a Conferência da Água 2023. Convém lembrar que em 2018 se iniciou a década da ONU para Ação na Água e Saneamento, sendo que 2023 é o meio dessa década.
Milton Santos, grande pensador brasileiro e baiano, disseem 2001 em seu livro “Por Uma Outra Globalização”, que os Estados Nacionais estavam sendo apropriados pelas grandes empresas. O que acontece na ONU é o espelho dessa apropriação. A Conferência da Água 2023 foi um exemplo límpido e cristalino de como as empresas se apropriaram dos Estados Nacionais. Quase todos os eventos dentro do espaço físico das Nações Unidas foram patrocinados por grandes empresas: uma marca de refrigerantes, a maior do mundo, aquela que patrocina o mercado da água no Brasil, fez um grande coquetel só para mulheres; em uma outra palestra, um dos patrocinadores era uma multinacional famosa fabricante de eletrodomésticos; havia também fabricantes de torneiras (essa até que faz sentido); multinacionais nos ramos de cosméticos e alimentos, além de fabricantes de agrotóxicos e sementes suicidas. Outro aspecto importante dessa participação é que elas nem sempre estavam organizadas no próprio nome, mas em nome de fundações ou organizações não governamentais – ONG, às vezes unindo mais de uma centena de grandes multinacionais em uma mesma entidade.Essas organizações estabelecem uma estrutura de lobby nos governos e quase sempre vem com propostas para a educaçãoe para o saneamento básico, exercendo grande influência na adoção de políticas públicas em vários países, em especial na promoção da privatização dos serviços, o que atende aos interesses das empresas patrocinadoras.
A Agência Nacional de Águas, a ANA, esteve na Conferência Mundial da Água e voltou a entoar o mentiroso mantra de 2018: “temos no Brasil 100 milhões de pessoas sem esgotamento sanitário”. Aliás, desde 2018 o número é o mesmo. A pessoa que foi emissária da ANA deu de ombros aos estudos feitos pela própria agência reguladora. Em 2017, a ANA fez um estudo denominado Atlas Esgotos: despoluição das bacias Hidrográficas, no qual ela afirma que são cerca 57 milhões de pessoas sem acesso ao esgotamento sanitário, um número ainda alto, mas que muda totalmente o discurso, tanto sobre o papel do setor público nesse contexto, quanto em relação à quantidade de investimentos necessários. Nesse Atlas a própria ANA apontava 140 bilhões de investimentos, 20% dos que os lobbies privatistas apontam como necessário.É importante dizer que a ANA, hoje, tem sua direção indicada pelo bolsonarismo, com mandatos até o ano de 2026.
Os dados apresentados pela ANA na ONU são o espelho do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento Básico – SNIS, que desconsidera as soluções individuais e adequadas de esgotamento sanitário, a exemplo da fossa séptica. Além disso, alguns municípios não apresentamqualquer informação sobre esgotamento sanitário, o que não significa que não tenham o serviço. Muitas vezes asprefeituras não sabem dimensionar e por isso não informam adequadamente na plataforma do SNIS. Esses fatos inflam osnúmeros de pessoas sem esgotamento sanitário, de modo que não é adequado construir políticas públicas tendo por base estatísticas inadequadas.
Um fato curioso é que, se a Companhia de Engenharia Rural do Estado da Bahia, a CERB, estivesse na Conferência da Água na ONU, ela certamente teria muito a dizer, sobretudo aos líderes europeus que desenvolvem ações de Saneamento Rural em diversos lugares do mundo como novidade tecnológica. Certamente os técnicos da Cerb diriam:“Já fazemos essas ações há mais de 40 anos lá na Bahia”. Aatuação da CERB pelo saneamento rural na Bahia (através daconstrução de açudes, pela organização das Centrais, cisternas, perfuração de poços, dessalinização, gestão comunitária do abastecimento rural) é copiada por diversos países do mundo. As ações (já realizadas há décadas pela CERB) foram apresentadas na Conferência da Água como contribuição para o atingimento do objetivo 6 dos ODS. Parabéns à CERB e aos seus trabalhadores e trabalhadoras.
Por outro lado, ficou bem estabelecido nas apresentações de diversos representantes de países a ideia de que o mundo vive uma crise global da escassez de água, que tem impactos na produção de alimentos e todas as demais atividades humanas. Essa situação seria consequência do uso desmedido desse recurso natural, não pelas famílias, mas sobretudo nas atividades industriais e no agronegócio, bem como em virtude do aquecimento global.
Produtos escassos tem maior valorização, o que efacilitaria a criação do chamado “mercado da água”, deixando as pessoas mais pobres de todo o mundo ainda mais vulneráveis aos mandos e desmandos do capital. E “o capital nunca dorme”, conforme sempre apontava
A Conferência da Água na ONU encerrou e deixou asensação de que haverá ainda mais lutas pela frente. Os Estados nacionais seguem cada vez mais privatizados e no mesmo bojo estão as águas. A luta não é mais local, mas uma luta global que é travada de maneira local. Quando o Sindae lança mão de todas as suas armas para impedir a privatização de um pequeno SAAE de um município nas margens do RioSão Francisco, ele está fazendo isso como um elemento de resistência global contra a mercantilização da água, por que sabemos que “quando tudo for privatizado, nós (os pobres)seremos privados de tudo”.